Prometi que o próximo artigo seria sobre como as regras influem no CS de um grupo de jogo, mas um assunto de maior abrangência surgiu, por causa de uma experiência recente na campanha que estou Mestrando no momento. Então o artigo "Contrato Social - A Influência do Sistema", fica pra próxima.
Heróis interessantes possuem defeitos. |
Interpretação do Personagem
Muitos jogadores (incluindo eu) têm o foco da sua diversão no RPG em construir e interpretar personagens. Para esses jogadores (de forma geral), o grande barato é ter um personagem que seja antes de tudo, uma pessoa. Esse tipo de jogadores costumam não se importar tanto com estatísticas, itens, talentos, e o nível de poder de seus personagens.
Os personagens que criam possuem defeitos, algumas vezes graves. Os jogadores então geram um certo apego à sua criação, e ao ato de interpretá-la durante o jogo. Até aí, nenhum problema. Os problemas para o grupo como um todo começam quando a interpretação de tais personagens é levada à extremos.
A Boa Interpretação
Existe um consenso que o bom jogador interpreta bem o seu personagem. O problema dessa afirmação é definir o que é uma boa interpretação, principalmente se levarmos em conta o contexto de interpretação dentro do RPG.
Antes de tudo, nós jogadores e mestres, muitas vezes não temos talento ou conhecimento de atuação suficientes para fazer juz aos personagens que criamos. Mas isso normalmente não é um grande problema, pois como o RPG é por definição um grande improviso coletivo, tudo fica "nivelado por baixo". Porém o jogador que atua bem deve ser bonificado pelo seu esforço. A intenção de ter tocado nesse assunto é deixar bastante claro que não vou falar da atuação, e sim das decisões que o jogador toma com seu personagem durante o jogo.
Escolhas
Deixando de lado a atuação, o que resta são as escolhas que o personagem toma através do jogador. E aqui eu penso que há uma ligeira mas importante diferença entre o que é considerado pela maioria dos RPGistas como "Bom Roleplay" e "Mau Roleplay".
Boa interpretação é normalmente considerada como representar seu personagem de acordo com sua história, defeitos e qualidades. A má interpretação acontece quando o jogador força seu personagem a tomar uma decisão que vai contra sua índole, seja para benefício do grupo ou próprio. Outro caso clássico é o meta-jogo, ou pegar conhecimentos do jogador e aplicá-los como se o personagem soubesse daqueles fatos.
Eu acrescento mais um fator, que considero mais importante do que qualquer outro, que é a adequação da decisão do personagem ao grupo e ao momento da aventura ou campanha. Muitas vezes a decisão óbvia do ponto de vista do personagem vai atrapalhar o fluxo do jogo severamente, entrando em atrito com o Contrato Social, que diz que o objetivo do RPG é a diversão. Nesse momento eu acho que a boa interpretação é aquela que não vai contra os princípios de seu personagem, mas permite que o jogo flua e não atrapalhe o jogo para os demais jogadores, e isso muitas vezes não é a opção óbvia.
Decidindo Adequadamente
As suas decisões podem ter grandes consequências. |
O clérigo, constante pregador das virtudes de seu deus, tenta converter o personagem agressivamente, mas só consegue irritá-lo. Em um dado momento o clérigo se nega a curar o assasino, se ele não se arrepender e pagar penitência pelos seus crimes. Então um acidente acontece, e o assasino acaba sendo envenenado pela sua própria flecha. O clérigo diz que é um castigo divino, e deixa o assasino se arrastar doente pela masmorra.
Mas o assasino é vital na missão. Ele é o batedor responsável por assegurar que não há armadilhas ou perigos ocultos à frente do grupo. Não há outro personagem adequado para assumir sua posição. Agora o clérigo detém grande poder em termos de fluxo de jogo. Sua decisão de não curá-lo pode levar até a morte de algum membro do grupo, ou o cancelamento da missão.
E agora? Muitos jogadores nesse momento continuarão interpretando o seu personagem da forma óbvia, e mesmo que outros protestem e discutam sobre o assunto, eles vão manter sua decisão. É aqui surge o problema. O fluxo de jogo é interrompido, o foco muda da missão para um conflito dentro do grupo, e todos tem suas expectativas frustradas. O jogador na posição do clérigo costuma ver isso como um problema alheio, pois ele está apenas fazendo o que seria natural para seu personagem.
O jogador nesse momento deve ser flexível, para o bem do jogo ele deve arrumar uma maneira de conciliar seu personagem com as necessidades do grupo. Talvez ele se lembre da vez que o seu companheiro salvou sua vida, percebendo um inimigo oculto prestes à atacar antes que pudesse reagir. Talvez uma informação retirada do submundo pelo assasino tenha levado o grupo a salvar uma vida inocente. Ou o clérigo perceba como ele nunca traiu o grupo, mesmo tendo oportunidades diversas para tal. Afinal de contas, na maioria das religiões há o perdão!
A oportunidade de interpretar está ali! Fazer o óbvio é maçante! Essa visão de jogo é muito mais interessante para o grupo. Pode render momentos memoráveis em campanhas e aventuras.
Conclusão - O Grande Tabu
O grande tabu é a palavra "obriga". Não se deve pensar nunca que seu personagem o obriga a tomar uma determinada decisão, isso é quase que preguiça por parte do jogador. Crie situações e interprete uma saída, sem trair o seu conceito de personagem. Acredite, isso é possível. Como pode um personagem de sua priópria criação o obrigar a fazer sso ou aquilo? A criatividade aqui é tudo.
Liberte sua criatividade! |
Encarar os defeitos do personagem como desafios é muito divertido e interessante para os que gostam de interpretar personagens complexos! Além disso, tem o potencial de deixar você menos frustrado com conflitos do grupo.
Para fechar o artigo, deixo a sugestão de que o limite da interpretação seja a diversão do grupo. Antes um momento de má interpretação do que uma briga entre os jogadores...
Até a próxima!
Inspiração:
RPG é realmente um Role Playing Game? do blog Acarajé & Dragons.
O ponto interessante do seu post é a noção de que o personagem é "obrigado" a fazer alguma coisa, e isto vai depender do sistema e do perfil montado do personagem. Sistemas mais fechados irão forçar alinhamentos específicos e, mais detalhadamente, traços de personalidade declarados. Não fica na mão do jogador mudar a atitude do seu personagem de maneira esquizofrênica e a seu bel prazer. AD&D 2a edição tinha alinhamento E, como regra opcional, características de personalidade.
ResponderExcluirSistemas mais abertos demandam que o mestre defina como montar a ficha de personagem, o nível de detalhamento do perfil da classe/raça e caráter. Se o mestre não presta atenção a isso tende a se tornar RPG de videogame (hack & slash), sem foco na interpretação.
O problema dos ataques de pelanca dos jogadores é se apegarem a seus personagens como se fossem eternos. Sendo um jogo que pretende trabalhar a ficção como real possível, o RPG tem que ter a premissa de que os personagens podem morrer no meio do caminho, o grupo (não os jogadores) podem se desmembrar e algum jogador terá que fazer um segundo personagem.
Isso depende muito de como seu grupo de jogo encara o alinhamento. Aliás, alinhamento é um bom assunto pra um post...
ExcluirMas de forma muito simplificada, você pode encarar o alinhamento de duas formas. Uma é que o alinhamento reflete as decisões do personagem, e o outro é que o alinhamento impede que o personagem realize ou deixe de realizar algumas ações.
Eu sempre usei o alinhamento como ferramenta, prefiro utilizá-lo refletindo as escolhas do personagem, nunca tive problemas com isso. O alinhamento seria, nesse caso apenas a "aura" ou "karma" do personagem, detectável magicamente e sendo sucetível aos diversos efeitos mágicos, etc... Foram raros os casos de mudanças de alinhamento em minha campanha.
Não fiz o post pensando em nenhum sistema específico, e acho válido que o jogador tenha a liberdade de interpretar amplamente o seu personagem... Mas sem estragar a diversão dos outros.
A visão de que o sistema força alguma coisa em termos de personalidade é válida, mas não é a única, e é isso que eu quis abordar com o post. As únicas opções não são "forçar um alinhamento" e "mudar a atitude de maneira esquizofrênica", há a opção de ser criativo dentro das limitações que você possui, que pode gerar momentos interessantes durante o jogo, de forma coerente. Afinal de contas amigos algumas vezes sacrificam seus ideais para ajudar outros amigos, certo? Claro que devem existir consequências para isso.
Da mesma forma, a visão de que os personagens dos jogadores são ou não "especiais", varia de jogo pra jogo. Com certeza num jogo mais real é furada se apegar aos personagens. Eu costumo fazer os personagens serem bem especiais, esse é o tipo de história que desenvolvo melhor de costume. Mas isso varia muito com as influências do cenário também. Um lugar mais mortal deve ser mais mortal, afinal de contas.
A interpretação mais "hardcore" é possível e até divertida, é uma escolha do grupo, mas na minha experiência poucos são maduros o suficiente para esse tipo de jogo. E como você disse, certamente um jogador que se apegue ao personagem nesse tipo de jogo vai gerar os ataques de pelanca.
Obrigado por ler o artigo e comentar! Desse papo já tirei várias idéias para outros artigos!