Se você, como eu, tem grande parte da diversão em interpretar um personagem bem construído, existem técnicas universais para a criação de personagens, para cinema, teatro, vídeo game, livros e outras mídias. Claro que no RPG não há roteiro e quase tudo é feito de improviso, mas podemos adaptar as técnicas básicas para nossos fins.
Esta é a técnica básica que desenvolvi quando estou criando personagens, tanto NPCs quanto PCs.
Como primeiro passo, você deve ignorar o sistema que vai ser usado. É um pouco difícil, eu sei, mas você vai logo entender o porquê.
Conceito
Esta é uma frase que resume o personagem. Agora não é o momento de se entrar em detalhes, você deve descrever o personagem de uma forma bem geral. Apresento alguns exemplos de conceito de personagem:
- Homem com um conceito deturpado de lealdade e honra devido à sua criação numa socidade de uma raça diferente da sua. (Darvin Dundragon, um personagem meu de D&D para Forgotten Realms);
- Visão distorcida do bem e do mal. Cética ao que os outros consideram como bem. (Lilith Nailo, personagem de um amigo meu para D&D, Forgotten Realms);
- Nobre diplomata, enojado com a falta de civilização ocidental, depois de ter tido contato com o mundo árabe. Mesmo assim, não se deixa levar pela intolerância e tenta tirar todos do “poço”. Curioso e ávido por conhecer outras culturas, para aproveitar outros exemplos. (Willian Oxford III, personagem meu para Gurps, Campanha na época das Cruzadas);
- Jovem mimado proveniente de família rica que tenta provar o seu valor. (Kaneda Yamamoto, NPC de uma campanha minha ainda não jogada).
O conceito é uma ótima ferramenta para o jogador, mas também para o mestre. Mesmo que o sistema de jogo tenha uma criação de personagem trabalhosa, o mestre pode conhecer a intenção do jogador previamente. Como todo resumo, ajuda a saber se aquele personagem vai ser adequado para o jogo, e ajuda o mestre a dar sugestões para o jogador.
Pseudo-Atributos
Aqui você pode definir, de forma geral, quais as características intrínsecas do seu personagem. Você pode usar os mesmos atributos do sistema que vai ser jogado, mas eu sugiro que expanda a lista disponível no sistema. Sugiro os seguintes pseudo-atributos:
Força, Destreza, Saúde, Aparência, Vontade, Inteligência, Bom Senso, Carisma, Empatia, Manipulação. Use os que achar melhor, e atribua da forma que quiser. Uma boa dica é utilizar adjetivos (péssimo, ruim, médio, bom, excelente).
Os pseudo-atributos lhe ajudarão a distribuir os atributos (e até mesmo habilidades) do sistema que estiver jogando. Como parte do conceito, lhe fornece uma base para criação da personalidade, etc.
Aparência
Seu personagem é feio, bonito ou tem aparência comum? Qual a cor dos olhos, cabelos? É alto ou baixo? Gordo ou Magro? Qual a sua idade?
Essas perguntas são simples, mas muitas vezes ignoradas pelo jogador. Além da descrição comum, também descreva a impressão geral que sua aparência desperta nos outros. Ele tem um olhar intimidador? Talvez sempre esteja sorrindo e seja uma pessoa convidativa. Outro exemplo seria um olhar distante e alheio.
História (Eventos Significativos)
Aqui pode ser o momento da grande complicação. Você não deve escrever um livro, apenas foque nos eventos da vida do personagem que ficaram marcados em sua memória. Vou dar como exemplo um evento do meu personagem Darvin, que já teve seu conceito descrito acima.
Seu pai era um mercenário famoso que durante um ataque a uma vila de elfos, acabou sentindo pena de uma elfa que defendia sua filha. Acabou casando-se com esta elfa e morando na vila, mas devido à sua vida de mercenário acabou sendo contratado para ir às novas terras. Foi o penúltimo filho a nascer e o único humano da família (evento muito raro no casamento entre humanos e elfos).
Como ele foi criado apenas pela mãe elfa e já era um pouco estigmatizado por ser o único humano entre os elfos, o segundo evento importante que eu destaquei para ele foi:
Aos 9 anos de idade, sem nunca ter visto o seu pai, tenta fugir para a cidade grande, mas nada consegue. Nesse momento seu pai volta de uma longa missão e ao chegar em casa decide ir buscar seu filho. É atacado por ladrôes e morre no caminho. Darvin chega a tempo de ver o enterro de seu pai, onde o culpam pela sua morte (circunstancialmente).
Finalmente, ele sofre as consequências de suas escolhas:
A partir de então, é estigmatizado pela sociedade. Desenvolve um estranho senso de lealdade com sua família, tentando demonstrar a partir de seu exemplo, valorizando ideais diferentes dos que os elfos acreditam, pois assim consegue se afastar deles enquanto tenta chamar a atenção do irmão mais velho e do resto da família.
Três ou quatro parágrafos são suficientes para um personagem inciante. Este era um personagem que iria começar no primeiro nível, em uma campanha de D&D. Evite criar uma história muito longa para um personagem novato, pois a sua história deverá ser traçada principalmente durante o jogo. Restrinja os eventos descritos à sua infância e adolescência.
Objetivos Pessoais
Esta é uma lista curta, porém essencial para se criar as motivações de seu personagem. Com base no conceito e história, liste os pontos importantes. Vou continuar com o Darvin como exemplo:
- Ampliar os horizontes fora do lugar onde nasceu, conhecendo outras pessoas e lugares;
- Encontrar alguém que dê sentido a sua vida;
- Ser mais famoso e reconhecido do que seu pai;
- Mostrar à vila onde nasceu que todos estavam errados sobre ele.
Desenvolvimento
Agora chegou a hora de pensar no futuro do seu personagem. Bons personagens não são estáticos, mudam com o tempo, de acordo com as consequências. Aqui você vai fazer um pequeno planejamento, que seria o direcionamento dado ao personagem se tudo corresse com seu controle absoluto. Continuarei com o exemplo do Darvin:
- Livrar-se da falta de auto-confiança e auto-estima (rapidamente);
- Busca obsessiva da lealdade, acima de qualquer outro valor;
- Caso consiga considerável poder, pode se tornar um opressor, que é a única forma de tratamento das pessoas que aprendeu durante sua criação;
- Objetivo: liderar.
Qual a função dessa parte do conceito? Simples, além de dar uma direção ao personagem de uma forma geral, também pode ajudar o mestre a criar oportunidades para seu personagem, coisa que sempre é útil numa campanha!
Personalidade
Aqui você deve listar algumas situações hipotéticas e como seu personagem reagirá à elas. Isto lhe servirá para deixar claro o foco do seu personagem, as coisas que ele considera importante. Também costuma ser uma informação valiosa para seu mestre, porque ele pode explorar as situações que você indicar aqui no jogo. Abaixo algumas coisas que pensei durante a criação do Darvin:
- Repulsão à combatentes que lutem de forma caótica (barbáros);
- Não descumpre suas promessas, mas não vai além delas;
- Tenta impor sua visão aos que considera mais fracos;
- Fiscaliza os outros, elogiando se fizeram um bom trabalho. Mas se errarem, mesmo que seja um erro pequeno, não perdoa;
- Se mascara, em contatos iniciais, como uma pessoa gentil e compreensiva (resultado de sua criação). Vai revelando sua natureza de tendências controladoras aos poucos;
- Tenta sempre se superar, para conseguir respeito dos outros, principalmente quando é "inferior" (resultado de como seu irmão o tratava);
- Idealiza um pouco as mulheres por causa do tratamento recebido da sua mãe, como "pessoas bondosas".
Convicções
Aqui devem ser descritas as crenças e filosofias centrais do personagem. Um personagem não agirá contra uma convicção sem um motivo muito forte. Esta é uma das partes mais interessantes para o mestre, pois criar situações em que uma convicção de um personagem é desafiada. O que pode render momentos bem interessantes. Seguindo com o Darvin:
- Valoriza a lealdade mais do que a vida;
- Disciplinar a todos que encontra;
- As outras pessoas não tem uma dedicação verdadeira à lealdade. Não conseguem compreender o verdadeiro significado de lealdade, dever e honra;
- Bons líderes devem ser testados regularmente.
Uma coisa interessante foi não ter colocado o aspecto de personalidade anterior sobre idealizar as mulheres como bondosas, em Convicções. Achei que como Convicção seria uma tendência muito forte, e preferi deixar como Personalidade mesmo.
Habilidades
Bom, infelizmente chegamos à um ponto do conceito onde o sistema de RPG utilizado para o jogo limitará seriamente o que você poderá fazer. Personagens de D&D, como o Darvin, não podem diversificar muito suas habilidades. Um sistema que utiliza classes de personagem tipicamente traz essa característica, enquanto um sistema mais "aberto" que permita um maior número de habilidades vai permitir que seu personagem seja mais fiel ao conceito. Bom, de qualquer forma, tente descrever o melhor possível o que seu personagem treinou e como ele utiliza seu treinamento. Com o Darvin optei por ser simples, já que ele seria um Guerreiro:
- Combate corpo a corpo, centrado em táticas mais refinadas, apesar de usar a maior espada (Darvin lutava com a espada de duas mãos), a utiliza com inteligência;
- Boa capacidade de pensar taticamente e estrategicamente. Tenta aproveitar situações na batalha;
- Trabalhos em metal.
Você também pode qualificar as habilidades, para dizer em que seu personagem treinou mais. Use termos relativos, como bom, excelente, mediano, ruim, etc...
Por fim, aqui você também pode listar poderes mágicos ou psíquicos e outras características especiais que o personagem porventura possua.
Função no Jogo
Chegamos ao final da ficha de conceito. Aqui você vai fazer um pouco de meta-jogo, e vai explicar, na sua visão de jogador ou mestre qual o propósito desse personagem no grupo ou na história. É simples, vamos ver o exemplo do Darvin:
- Liderar o grupo ou assessorar o líder do grupo;
- Disciplinar o grupo através do exemplo.
Isto serve para direcionar o seu personagem no papel que ele vai assumir na história. Deve-se evitar colocar coisas óbvias, como por exemplo um mago que "usa magias contra os inimigos do grupo", ou um clérigo que "cura os companheiros feridos em combate". Tente pensar nas possibilidades que o sistema oferece para um determinado tipo de personagem.
Melhor seria um mago que "é especializado em usar seu conhecimento para desvendar segredos arcanos" ou "se especializa na criação de objetos mágicos, criando pergaminhos, poções e outros itens mais poderosos para o grupo mais adiante". Também é muito melhor um clérigo que "tenta trazer paz de espírito aos demais personagens do grupo" ou usando um pouco de meta-jogo "será bondoso, e vai insistir com os outros personagens em ajudar outros mesmo que isso traga grandes problemas ao grupo".
Conclusão
UFA! Este artigo ficou muito mais extenso do que eu imaginava, mas acho importante abordar esse assunto da forma o mais completa possível, pois acho que a criação de bons personagens é essencial em qualquer sessão de RPG, e uma ferramenta que nos ajude a liberar o lado criativo nesse momento é importante.
Como consideração final, gostaria de dizer que tentei ser o mais completo possível com esse método, e a princípio pode parecer muito complexo ou até mesmo rígido em alguns pontos. O que eu coloquei aqui é só uma idéia e com certeza não é a única forma de se fazer bons personagens. Depois de um tempo, inclusive, eu passei a fazer toda a ficha de conceito na minha cabeça, anotando as informações relevantes na própria ficha de personagem. Devo lembrar que o formato da ficha de conceito também é muito flexível. Ao invés de fazer listas, você pode fazer tudo em parágrafos, por exemplo. Também não precisa preencher todas as seções, é só um auxílio para que você não esqueça nada de importante durante o processo.
Em breve postarei uma ficha de conceito mais resumida, para ser usada para construção personagens que não exijam tantos detalhes. Como, por exemplo, NPCs que não influam muito na história ou também para jogadores que gostaram da idéia mas acharam trabalhoso demais.
Espero ter no mínimo ajudado algumas pessoas a pensar com mais carinho no momento da criação de um personagem!
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Ficha de Conceito de Personagem (Documento Word).
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